Lembranças do Rabino e do Rio Buregregue.

Renato Athias
6 min readJun 13, 2021

Por Renato Athias

Rio Buregregue, de um lado Rabat e do outro Salé

A primeira vez que escutei falar do Rio Buregregue e, do grande e famoso Rabino Raphael Encaoua Z”L, foi numa conversa com o meu tio-avô Eli Athias, de abençoada memória, em Beer Sheba, em 1982, quando de minha primeira viagem à Israel para conhecer a família que tinha saído de Salé, no Marrocos, dezesseis anos antes. Sim, isso mesmo, Salé ocupava de fato uma grande parte da conversa da família, seja, em Beer Sheba onde eu estava de passagem, ou mesmo, em Paris onde eu vivia durante aqueles anos.

Vira-e-volta, nas conversas, aparecia uma imagem de Salé. Lembro, que isso me impressionou bastante. Eu fui acumulando muitas dessas lembranças em minha memória. Minha prima Georgette, filha de meu tio-avô Machlouf, e seu marido Charles Fhima, que muitas vezes conversam, entre eles, em arbiah (djudeo-arab), até hoje, são de fato, os responsáveis por grande parte dessas imagens construídas minha memória.

Acredito, que aqueles que nasceram e viveram em Salé, sempre tem algum fato ou alguma anedota que se passou em Salé, para contar em uma roda de conversa. Geralmente se conversava sobre como era dificil atravessar, naquele tempo de Salé para Rabat. Pois, era um sistema de catraia, semelhante aquele que tinha visto em Manaus, no Rio Negro. E… quantas lembranças aparece quando estamos reunidos. Certamente, eu curioso como sou sempre ficava perguntando, pois me interessava saber mais, de meu avô Jacob ibn Amram Shlomo Athias de abençoada memória (irmão mais velho de Yossef, Eli, Machlouf e Hanna). E, portanto, estar ao lado de meu tio-avô era uma grande oportunidade de obter mais informações de seu pais, o shohet Amram Shlomo Athias Z”L, que veio de Fez, (no ultimo quartel do século XIX) para casar, em salé, com a super famosa, com muitas estórias, nos dois lado do Atlântico, de um lado conhecida apenas como Alegria, e do outro lado, conhecida como Simha Ben-Attar Athias.

Estando em Beer Sheba eu me lembrava de memórias que meu pai contara de sua avó Alegria, para mim ainda criança, de como ela lidava em sua casa, em Salé, com seus seis filhos. Na realidade, ele repetia pra mim, o que o pai dele contava sobre a mãe dele. Escutei meu avô falar sobre o dia que ele recebeu, uma carta de minha prima Alice (filha de Yossef), contando o dia do falecimento de minha bisavó, em Beer Sheba, em 1958. Ele, meu avô Jacob chorava esse triste acontecimento bem nas margens do Rio Amazonas, em uma cidade onde viveu até os últimos dias de sua vida, a querida Alenquer. Pelas palavras dele mesmo, “este foi o dia mais triste de minha vida”.

O Rio Buregregue seguramente é a imagem que mais ficou na minha memória, e eu só fui apreciar em 1998 quando estive lá com meus filhos. Sempre os tios avós se referiam a esse Rio de Salé, que na realidade é o Rio que divide a Medina de Rabat da Medina e de Salé. E, tem muitos nomes, Rio Bu Regregue, também grafado Bu-Regreg, Bu Ragrag, Bou-Regreg, Bouregreg ou Abi ou Abu Raqraq (do árabe أبورقراق), também conhecido como Rio de Salé. É um rio que tem 240 km de comprimento e de caudal médio de 23 m³/s, que em períodos de cheia pode atingir o 1.500 m³/s. Nasce no maciço do médio das famosas montanhas do Atlas, a 1.627 m de altitude, próximo do Jbel Mtourzgane (província de Khémisset) e, de Grou (província de Khénifra), desaguando no Oceano Atlântico entre as cidades de Salé e Rabat.

É um rio muito grande e por onde se utilizou como uma importante via de transporte. Mereceria juntar essas lembranças que vários membros de minha familia sobre como referem a este rio. Sem dúvida, para os judeus marroquinos que vieram de Salé para a Amazônia, a vida-de-rio não era completamente desconhecida deles. Estes marroquinos de Salé, que vieram para o Brasil, não se sentiram, como diria o famoso antropólogo Lévi-Strauss, em seu livro "Tristes Trópicos" despeizados ao se estabeleceram nas margens de rios da Amazônia, muito semelhante, como aqueles da grande bacia hidrográfica do Rio Amazonas. E, nem se sentiriam “desterritorializados”, tal como Deleuze & Guatari (1977) vão discorrer e desenvolver este conceito na obra que escreveram sobre Kafka. Eu diria, que nem pela língua e muitos menos pela cultura, pois muitos falavam em Belém e Alenquer a Haketia e o Arbiah (Djueo-arab) e realizavam estudos com sábios que também vieram do Marrocos, como diz meu amigo, Isaac Dahan, Shaliach Tzibur da Esnoga de Manaus.

Ao ouvir as história de Salé, sempre em algum momento se escutava sobre o Rabino Raphael Encaoua Z”L (Raphael Ankawa) um sábio importante que foi rabino em Salé por muitos anos, cuja a memória ainda celebramos até hoje no dia de sua Hilulá. Meu tio-avô Eli, me falou também dele em Beer Sheba. Ficou na minha lembrança, quando ele disse-me, que logo após o Bar Mitzvah de meu avô Jacob, juntamente com outros de seu grupo de idade, em Salé, o oficiante teria sido esse famoso Rabino. Eu não liguei muito no momento em que ele me falou, pois na ocasião eu nada sabia deste grande chacham, sábio da Torah. Anos depois em Paris, onde eu morava, Charles e Georgette vão me contar mais sobre a fama deste Rabino de Salé.

Vou sentir o peso de sua importância e perceber mais de perto dele, quando em 1998, juntamente com meus filhos, Diloá-Jacob, Aaron e Jonas, ainda menores, estávamos no cemitério Salé, quando chegou um imenso grupo de pessoas, de longe para celebrar a sua memória e visitar à sepultura deste importante tzadik. Meu interesse sobre estes sábios de Salé cresceu em minha permanente curiosidade etnográfica, quando descubro que outro Tzadik o Ribi Haim Ben-Attar, mais conhecido como OR Hahayim HaKadodesh Z”L entrou na minha vida, cujas leituras de seus escritos fazem parte de um cotidiano para mim na atualidade.

Meus primos, que nasceram em Salé, tem várias estórias do Rabino Raphael Encaoua, filho também, de um outro Rabino, Modehai Encaoua com a senhora Rina Ben-Attar Encaoua, pois por muitos anos ele foi o chefe religioso em Salé. Logo que os Franceses, em 1912, assumiram o protetorado no Marrocos, o Rabino Raphael Encaoua se torna então o Rabino Chefe do Marrocos. Evidentemente, os Franceses, iniciaram no Marrocos uma espécie de “Consistório” tal como Napoleão tinha instituído na França em 1807. Existem muitos outros fatos que fazem parte da trajetória do Rabino Raphael Encaoua com nossa família, que mereceria um texto mais amplo. O importante, aqui é dizer que no dia 4 de agosto, durante a Hilulá deste justo, um número significativo de pessoas, de muitos países, chegam até Salé, para celebrar a sua memória e, evidentemente, percebe-se o fervor do judaísmo marroquino que se encontra hoje, na realidade, na grande diáspora.

Ribi Raphael Encaoua (1848–1935)

Recentemente, em 2015, estou em Salé, juntamente com meu filho Aaron, minha irmã Yolanda e meu cunhado Ivo, saímos para visitar o sepultura de meu bisavô, era impossível não parar no mausoléu do Rabino Encaoua. Minha prima Gisèle, logo ao saber que eu iria até o cemitério de Salé, imediatamente me pediu que a levasse um pacote de velas de lá. Esse gesto com relação a esse sábio, mostra para nós a grande importância que os ensinamentos destes Tzadikim do Marrocos tem na atualidade para a grande diáspora do judaísmo marroquino nas Américas.

Netanya, 15 de fevereiro de 2015

No cemitério de Salé, Fev. 2015, com Aaron meu filho e minha irmã Yó, fotografia clicada pelo meu cunhado Ivo, lembrando do grande Rabino Raphael Encaoua, Z”L.
Renato, Diloá-Jacob, Aaron e Jonas em 1998 no cemitério de Salé ao fundo o mausoléu do rabino Raphael Encaoua

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Renato Athias

Brazilian, Amazonian Jew, Anthropologist, Professor at Department of Anthropology and Museology at the Federal University of Pernambuco, Recife, Brazil.